Notícia de Cláudio Gabriel e Lucas Bulhões
O dia 7 de setembro, feriado da Independência do Brasil, foi extremamente marcante para a produção artística nacional. E, ainda mais, para a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Após os atos de censura feitos pela prefeitura, o evento passou por diversas comoções e um dia um tanto quanto conturbado.
Tudo começou na quinta-feira, dia 5 de setembro. Em uma atitude drástica, o prefeito da cidade do Rio, Marcelo Crivella, decidiu pedir pelo recolhimento das edições da HQ Vingadores: A Cruzada das Crianças. Segundo o mesmo, a obra continha material pornográfico na qual deveria – sob o argumento do artigo 78 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) – conter um faixa mostrado que o conteúdo é explícito e embalado em uma sacola preta. O problema é que a decisão por parte de Crivella não possuía nenhum respaldo jurídico pelo motivo do material não ser pornográfico, mas sim conter um beijo entre dois personagens homens.
Além da polêmica: conheça a HQ Vingadores: A Cruzada das Crianças
No dia 6, fiscais da prefeitura foram até a Bienal para procurarem edições e cassá-las. Eles acabaram por não encontrar nenhuma, esgotadas devido a imensa procura. O pequeno número de exemplares evaporou em apenas 39 minutos da sexta.
A decisão por chamar a fiscalização chocou a todos e gerou revolta por parte das editoras presentes no evento. A Faro Editorial, por exemplo, colocou um cartaz em seu estande escrito “Livros Proibidos Pelo Crivella”. Além disso, houve uma grande comoção nas redes sociais apontando censura por parte do prefeito.
O youtuber Felipe Neto transformou tudo isso em uma ação: comprou 14 mil livros de diversas editoras presentes no evento para distribuir gratuitamente escrito “Esse livro é Impróprio Para Pessoas Retrógradas, Atrasadas e Preconceituosas”. Entre as distribuídas estavam publicações como Boy Erased, Me Chame Pelo Seu Nome, Com Amor, Simon, entre outros.
Inicialmente, as obras seriam dadas em dois horários, 12h e 18h. O primeiro horário ocorreu conforme o programado, com filas se formando pela praça central do lugar desde 10h30 da manhã. O segundo acabou por ser adiantado para cerca das 15h, próximo de quando saiu a decisão do presidente do TJ-RJ de recolher os livros LGBTQ+ da feira. Dessa forma, os 14 mil exemplares foram esgotados rapidamente, por volta das 18h.
O clima ao longo do dia
Todo o sentimento ao longo do dia na Bienal foi marcado pelo acolhimento. Devido a distribuição de livros de Neto e ao feriado, o evento teve seu recorde de público em um único dia com 70 mil pessoas. Uma parte relativamente significativa desses presentes sendo jovens e LGBTQs+, com expressões através de camisas, adesivos e mais. Durante a doação, inclusive, foi possível ver muitos casais e pessoa abraçadas nas bandeiras.
Nos estandes, não houve nenhuma mudança em relação a apresentação dos livros relacionados a essa temática. Para além do posicionamento nas redes sociais, a Intrínseca foi uma das poucas a colocar a causa em destaque, com uma bandeira hasteada no início de seu estande. A Companhia das Letras tem sua área de destaque para livros da temática desde o início da convenção, tendo sido todos comprados por Felipe para distribuir. Houve reposição logo ao início do sábado. Na Harper Collins, houve a colocação do livro A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman, com um beijo entre duas mulheres estampado em aberto.
Após a decisão do TJ-RJ começou um clima de incerteza no ar. Alguns estandes, ao serem contatados pela reportagem, não quiseram comunicar o que fariam caso os fiscais viessem.
Visto o acontecido, era esperado que alguns dos debates girassem em torno das pautas. Na mesa ‘Diversidade, substantivo plural’, a discussão se pautou na função da diversidade e representação social na literatura. O escritor João Silvério Trevisan aproveitou para relacionar ao ocorrido no dia anterior, dizendo:
“o governo usa o medo como uma epidemia. Nós conquistamos um bocado de direitos que não tínhamos antes. E quando as pessoas se mostram assustadas, eu digo que elas estão caindo no que eles [os governantes] querem”
Quando foi sabido da vinda dos fiscais, as outras mesas assumiram um tom ainda mais direto. O debate ‘Literatura arco-íris’, na qual levava escritores LGBTQ+ para falarem de suas obras, foi interrompido pelo escritor Michel Uchiha, pedindo a união de todos em direção ao Pavilhão das Artes, onde os fiscais se encontravam. Anteriormente, já havia sido realizado um beijaço como forma de protesto. A advogada Giowana Cambrone disse ao auditório, antes que todos se reunissem ao lado de fora.
“Os órgãos censores estão aqui recolhendo livros. Eles estão atacando nossas existências, liberdade de expressão e o estado democrático de direito”
A chegada de fiscais da prefeitura, por volta das 18h, colocou um clima maior de pânico no ar. Esses acabaram por ficar por duras horas conversando com a direção da Bienal, em uma tentativa de impedir a entrada desses. Contudo, os agentes públicos entraram à paisana no evento.
Com livros em mãos – dos quais muitos faziam parte dos distribuídos por Felipe Neto em sua ação -, centenas de leitores faziam ecoar gritos como “Fora Crivella” e “Não vai ter censura”. Em uma marcha pelos quatro pavilhões que compõem a feira, o movimento acabou ganhando mais adeptos e tomando os holofotes dos eventos.
Entre os líderes da manifestação estavam Uchiha e a autora Marcela Passos. O primeiro tenta levar suas publicações como causa social propriamente, por isso toda a situação o marcou.
“Parte dos lucros dos meus livros são aplicados para instituições com LGBTs em situação de vulnerabilidade. Amanhã [dia 8] nós vamos trazer essas pessoas para que eles tenham acesso a cultura”, conta. “Eu não quero que mais pessoas passem pelo que eu passei. Eu quero que mais pessoas tenham acesso a nossas histórias, quero que mais pessoas sejam conscientizadas, eu quero que as pessoas olhem para pessoas diferentes, quero que as pessoas entendam, de verdade, o que é diversidade”.