Eu sou um homem simples. Aprendi a ser assim com meus pais e acredito que esta seja uma das minhas maiores dádivas. Não preciso de muito para ficar feliz. Um bom livro e uma taça de vinho valem mais do que uma camarote open bar. Ainda assim, isso não quer dizer que eu tenha desenvolvido antipatia ao dinheiro. Muito pelo contrário. E é justamente por isso que não consigo entender a situação de certo amigos.
Convivendo com pessoas muito mais jovens do que eu, ouço com certa frequência, na faculdade, o mote dos inconformados: “Não consigo um bom emprego! As pessoas exigem experiência, mas não me dão uma oportunidade. Eu sou jovem e eles exigem demais de mim”.
Essas frases seriam completamente verdadeiras, se não vivêssemos no século XXI. Se a informação não estivesse a um clique de distância. Se os programadores não fossem mais valiosos do que os arquitetos, engenheiros e advogados. Não há faculdades que formam programadores. Há alguns protótipos, mas nada sério. E, mesmo assim, a maioria dos programadores mais famosos aprenderam por conta própria, pesquisando em fóruns e vendo vídeos no YouTube.
A geração “quebrada”, que não consegue emprego porque ninguém “dá uma chance” é a mesma que inunda a cidade nos sábados a noites. É a mesma que congestiona a Avenida Tarumãs, com carros, músicas altas e garrafas de cerveja. Eu gosto de carros, música alta e garrafas de cerveja, é claro, mas consigo entender a linha que separa o que eu quero do que eu preciso.
E isso me fez entender que, em sua grande maioria, os que mais reclamam são os que menos precisam reclamar. Nenhum daqueles jovens está passando fome. Nenhum deles está desesperado por uma oportunidade de aprender uma profissão. Se fosse esse o caso, as coisas seriam diferentes.
Falo por experiência própria. Hoje em dia, ganho relativamente bem, mas passei por muita coisa antes disso. Já trabalhei como vendedor de sorvete, assistente de marceneiro, empacotador, caixa, garçom e padeiro, antes de me encontrar na publicidade. No meio tempo entre essas profissões, desenvolvi o amor pela escrita e escrevi meus dois primeiros livros. Não havia tempo para reclamar da vida. Enquanto eu não estava escrevendo, estava trabalhando. Quando não estava fazendo nenhum dos dois, estava dormindo. Simples assim.
Claro que os tempos são outros. Claro que eu queria que meus pais tivessem bancado tudo na minha vida, para que eu pudesse apenas reclamar da falta de oportunidades. Isso não era uma opção. Quando meus pais se separam e eu fui morar com o meu pai, que passava a maior parte do tempo viajando, ou eu trabalhava ou eu não comia. As coisas eram difíceis e eu não espero que ninguém tenha que passar por isso.
Mas também seria ótimo se a geração mais conectada da história da humanidade fosse a mais inteligente. Se a geração que tem mais acesso à informação fosse, de fato, a mais informada. A geração 2000 tornou-se a geração da reclamação. A geração da polarização, do pobre versus o rico, da esquerda contra a direita, mesmo que nenhuma das duas saiba exatamente o que isso quer dizer.
Mas eu entendo os jovens. Entendo porque já fui um deles.
Muito provavelmente, a frase que mais ouvi de meus pais foi: “estude, menino, para não terminar como nós”. Na época, eu não conseguia ver nenhum problema em terminar como eles. Na época, é claro. E não me leve a mal, porque não estou dizendo que vejo hoje em dia. Só entendi o que eles queriam dizer.
Meu é um homem simples e bom, daqueles difíceis de se encontrar. Sabe um pouco de tudo e não fica sem assunto, seja falando com aluno, seja falando com um professor. Nasceu numa cidade que nem existe mais, no norte do estado de São Paulo, e viveu boa parte da juventude viajando pelo Brasil, trabalhando como motorista de caminhão ou como vaqueiro. Entre as décadas de 1970 e 1980, ele ajudou a desbravar a região que hoje chamamos de lar, derrubando árvores e levando só Deus sabe para onde.
Minha mãe, pelo contrário, vem de uma família um pouco diferente. Ela, ao lado de seus outros onze irmãos, viveram quase sempre no mesmo lugar, seguindo o mesmo caminho. Aquela velha história dos filhos que crescem e se transformam nos pais. Talvez tenha sido isso que a fez se apaixonar pelo cabeludo magrelo, com calças boca-de-sino e sapato plataforma que conheceu logo depois de completar quinze anos.
O fato é que eles se conheceram, se casaram e eu nasci. Vivemos migrando entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul, mas sempre na mesma rotina. Meu pai trabalhava em fazendas, cuidando de gado e vivendo a vida que tinha aprendido a viver. Minha mãe era uma ótima dona de recasa, recatada e servil, como era de se esperar. E eu, no íntimo do meu ser, desejava crescer logo e seguir o mesmo caminho do meu pai.
Mas o que eu não sabia era que meu pai já não era mais o mesmo. Ele me olhava, e não só a mim, mas os meus outros dois irmãos que haviam acabado de chegar, e sonhava com um futuro diferente. Não queria que fossemos meros trabalhadores de fazenda. Queria que fossemos os donos. Havia aprendido com o seu pai que sua família era de servidores, não de senhores, mas algo o despertou para o outro lado. Foi por isso que nos mudamos para a cidade, quando eu tinha pouco mais de 11 anos.
Toda essa biografia de vida está aqui só para dizer uma coisa. A diferença entre o que faz e o que não faz começa na mente. Meu pai sabia qual era o meu destino: me transformar nele. Continuar na fazenda, servindo, trabalhando de sol a sol. E não há problema algum nisso, é claro. Mas ele queria que eu tivesse uma escolha. A mesmo escolha que foi negada a ele quando seu pai o tirou da escola, ainda na quarta série do ensino fundamental, para que tivesse mais tempo para trabalhar.
Infelizmente, porém, eu não aproveitei essa oportunidade logo no início. O tempo foi cruel e comigo não foi diferente. Depois de alguns anos na cidade, minha família desmoronou. Meus pais se separam e eu fiquei completamente perdido. Entrei numa depressão profunda e me esqueci da escola. Reprovei alguns anos e tive um aproveitamento baixíssimo nas disciplinas que me interessavam. Eu já tinha 22 anos quando o Ensino Médio começou a fazer falta, quando eu finalmente me encontrei na vida.
Tudo aquilo que o meu pai sempre dizia caiu como uma bomba na minha cabeça. Mas eu não tinha escolha. Voltei a estudar. Finalizei o ensino médio com o exame do Enem e ingressei numa faculdade. Não foi como eu queria e eu saí.
Fiquei longe do ensino convencional novamente, mas nunca mais parei de estudar. Fiz mais cursos do que julguei ser capaz. Viajei para São Paulo, coisa antes considerada impossível, unicamente para participar de um evento de tecnologia, onde aprendi coisas valiosíssimas. Descobri o mundo dos cursos online e me transformei por completo. Em poucos meses, eu já havia aprendido muito mais do que em todos os anos modorrentos na escola.
Só aí que eu entendi, de fato, o que meus pais queriam dizer quando insistiam que eu estudasse. O conhecimento nos faz crescer. O conhecimento torna joga escada sobre as barreiras intransponíveis.
Voltei para a faculdade e, se tudo der certo, nos próximos anos, serei o primeiro membro da minha família com diploma universitário. Encontro o meu pai quase todos os dias e vejo o brilho nos olhos dele quando falo da faculdade. Fico imaginando onde ele poderia ter ido se tivesse as mesmas oportunidades que eu. Minha mãe ficou no Paraná, mas ela sempre disse que se orgulha do que fiz até aqui e eu sei que é verdadeiro. Eu também me orgulho, de certa forma, mesmo querendo mais.
Recursos financeiros não são o ponto mais importante do mundo, mas também não podem ser ignorados. Meu pai conseguiu comprar seu primeiro veículo agora, com quase sessenta anos. Eu tenho o meu desde que tinha vinte e cinco. Meu pai ainda trabalha, sem previsão de parar, mesmo com a idade. Eu posso escolher quando, onde e com o que posso trabalhar. Meu pai enfrentou uma grande dificuldade para conseguir emprego, alguns anos atrás. Eu nunca fiquei mais do que um mês sem trabalho. E só fiquei esse mês em questão porque recusei algumas propostas.
O conhecimento abre portas. A vontade de aprender também. Por isso, sou eternamente grato aos meus pais, que souberam entender isso, mesmo quando eu mesmo não havia entendido. E que eu seja tão sábio quanto eles quando chegar a minha hora de tomar as decisões por outras pessoas.





























